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Uma Ontologia do Vazio - O imaterial e o material na obra de Elias Muradi

Jurandy Valença | 28/10/2020

Há quase 20 anos atrás, em 2001, no livro "Novíssima arte brasileira: um guia de tendências", Katia Canton já comentava de forma assertiva a obra de Elias Muradi. Ela dizia que o artista "tem sua produção no território da escultura e utiliza o desenho como ferramenta de compreensão do espaço, lugar, relação, posição e tensão. As peças surgem na escala da folha de papel dialogando essencialmente com formas geométricas que dimensionam algo possível, ângulos, dobras, preenchimento, contornos e perímetros. O corpo humano é referência para a construção das peças que muitas vezes remetem ao mobiliário ou estruturas de convivência". Anos antes, em 1996, Tadeu Chiarelli já falava em outro texto presente no livro "Arte Internacional Brasileira" [1999] do vazio no qual "a presença do corpo é pressentida", do seu universo simbólico" que vai além da própria materialidade das peças, do mistério que brota" em sua produção. A compreensão de ambos do processo visual do artista continua pertinente e retomo seus pensamentos somando outros elementos constituintes do processo de Elias Muradi que foram surgindo ou quiçá se acentuando nessas mais de duas décadas. Após anos dedicado à educação e formação, o artista retomou seu ateliê e nos últimos dois anos tem se dedicado com afinco à produção de novas obras. Cerca de 40 esculturas - incluindo relevos de parede -, além de fotografias e um objeto estão reunidos nesta exposição de longa duração na Fundação Mokiti Okada, em São Paulo, que segue até fevereiro de 2021.

A produção de Elias Muradi dialoga com alguns artistas que buscavam uma dimensão espiritual da escultura do século XX como o romeno Constantin Brancusi (1876-1957) e o suíço Alberto Giacometti (1901-1966). O primeiro buscava o ideal e a pureza das formas, abandonando a "escultura representativa", figurativa. Brancusi se tornou mestre na simplificação de formas simbólicas, ele partia em direção a uma busca, que como ele mesmo dizia era "em direção a reunir todas as formas numa só. E isto é tão demorado como qualquer contemplação budista do universo ou como qualquer contemplação de um santo medieval do amor divino". Já o segundo, mais do que esculpir uma figura, Giacometti procurava em sua obra esculpir algo como um interdito, um "entre" que configura a distância que nos separa da escultura, da forma, instaurando um "espaço negativo". Esse espaço se desvela, se completa não só no ato de ver, mas também se experimenta na experiência do tocar. Mas como tocar o invisível, o vazio, o que não tem - aparentemente - forma?

Relembro o que o filósofo, crítico de arte e historiador francês Georges Didi-Huberman diz, que quando vemos o que está diante de nós, sempre há uma outra coisa que sempre nos olha de volta, "impondo um em", um entre esse que olha e aquilo que é visto. Também lembro das esculturas do austríaco radicado no Brasil Franz Weissmann, que tratava o vazio como forma. E também não posso deixar de lembrar dos trabalhos da portuguesa Leonor Antunes que define suas obras como "esculturas criadas no espaço", que estabelecem relações entre a escultura, a arquitetura, o design, a luz, e o corpo; corpo também aquele que é do espectador que trafega pela galeria ou no ambiente que a obra do artista ocupa. Porque assim é o processo de pesquisa de qualquer artista, uma miríade de influências e referências, mesmo que não percebidas a priori, mas que agregam, somam ao seu processo criativo que está sempre em movimento. Quando me debruço sobre o trabalho de Muradi, seu vocabulário visual também abriga algo de alquímico, de místico que me lembra quando o também escultor Ascânio MMM falava sobre o fazer artístico. "É um processo de alquimia, em que o trabalho no ateliê é fundamental". É como se Muradi, baseando-se nas formas do corpo esculpisse preenchendo vazios, formas dotadas de ausências presentes. Ao vermos suas esculturas temos que nos deixar ser "contaminados", invadidos sem reservas pelo objeto e não só nos mantermos à distância como meros espectadores. Ele realça os vazios, expõe lacunas, interditos que dizem mais do que [não] aparentam. Uma troca de reciprocidades entre a presença e a ausência do corpo demonstrando - como dizia o filósofo francês Louis Marin que a imagem na arte é "uma economia paradoxal do Sentido".

A obsessão de Muradi pela perfeição ecoa no ensaio que o poeta e crítico americano Ezra Pound dedica à obra de Brancusi no começo da década de 1920, quando escreve que o escultor, "antes de mais nada é um homem apaixonado pela perfeição, que busca incessantemente a eliminação de acidentes e imperfeições". É como se todo esse conjunto de esculturas que Muradi apresenta agora, que se assemelham a obeliscos, monólitos e até mesmo a totens configurassem uma única obra, uma única escultura que me remete a uma obra emblemática de Brancusi, a "Coluna sem Fim", de 1937. Essa escultura gigante reúne simbolismos preciosos para o romeno que a via como um meio comunicante entre três níveis cósmicos, "a Terra, o Céu e as Regiões Inferiores". Ela é, ao seu modo, o seu axis mundi [em latim "centro do mundo", "pilar do mundo"], algo que não só liga, mas também "sustenta o Céu e a Terra". O também romeno Mircea Eliade em seus escritos sobre o sagrado e o profano comentava que o axis mundi pode ser retratado por várias imagens como uma árvore, uma escada, uma coluna ou um pilar, todas essas representações dotadas de verticalidade, como se fosse possível a comunicação com o que está por cima, acima.

Procurando uma sequência ascensional do espaço, as esculturas de Elias Muradi reúnem um vocabulário que, de certa maneira, abriga arquétipos elementares como a coluna e a esfera ovalada. Ele apura a sua forma de representar a ideia, a matéria polindo a superfície de suas obras a ponto de fazer da escultura não uma peça apenas tridimensional, mas que transcende a presença do material, que convida o espectador não só para ver, mas também para tocar, buscando um sentido de privilegiar a simplicidade formal, objetivando alcançar "o verdadeiro significado das coisas", traduzindo tridimensionalmente esse não abstrato e nem figurativo, algo que fica "entre" um e outro, em formas depuradas nas quais o importante, o que se deve realçar é a "redução" da coisa, da forma. Tanto que Brancusi afirma que "aquilo a que chamam de abstrato é o que existe de mais realista. O que é real não é a aparência, mas a ideia, a essência das coisas." Na sua produção escultórica Muradi traz algo de "primitivo", de "pré-histórico". Vale lembrar quando o escritor, ensaísta e historiador francês Henri Martin falava das esculturas pré-históricas, por exemplo, que afirmava que elas não correspondiam apenas a algo que era "cultual ou simbólico", algo que se inclinava ao sagrado. Elas foram criadas também - muitas delas - apenas pela beleza, pela forma.

Como na obra de Brancusi, para Muradi os pedestais, as bases de suas esculturas são como parte integrante do trabalho. Assim como na produção do escultor romeno, cujas esculturas eram normalmente compostas pela sobreposição de duas ou três peças, suas esculturas também exigem que o espectador se relacione com elas além do olhar. Poucos anos antes da morte de Brancusi, na década de 1960, ao abolir o pedestal, os minimalistas colocaram a escultura no chão, horizontalizaram-na. Um dos mais renomados artistas do minimalismo, o norte-americano Carl Andre seguiu a herança de Brancusi ao adotar o despojamento formal, o ascetismo da ideia e a simplicidade acessível pela essência pura das coisas. Excluindo o "desnecessário", percebe-se que não é o detalhe que cria a obra, mas a sua essencialidade.


Jurandy Valença, setembro de 2020